A assistência social é direito, não caridade
A Constituição de 1988, nos artigos 203 e 204, estabelece que a assistência social é um direito universal e um dever do Estado. Desde então, a legislação brasileira — especialmente a LOAS (Lei 8.742/1993) — estrutura a assistência dentro do campo da seguridade social, com financiamento público, atuação multiprofissional e controle social. No entanto, São Paulo enfrenta um desvio perigoso dessa lógica, agravado pela Portaria 105/2025, publicada pela SMADS.
O que diz a Portaria 105/2025
A Portaria 105/SMADS/2025 regulamenta o ingresso de doações e voluntariado em serviços públicos de assistência, incluindo equipamentos de acolhimento institucional, como os SAICAs. O texto autoriza Acordos de Cooperação com entidades colaboradoras — inclusive religiosas — para organizar e acompanhar voluntários em atividades contínuas e complexas.
Consequentemente, essa diretriz normaliza a substituição de equipes técnicas por mão de obra voluntária não profissional. Com isso, contraria frontalmente o SUAS e compromete direitos fundamentais, como a laicidade, a proteção integral e o sigilo profissional.
Retrocesso institucional: como isso afeta o SUAS
A inserção de voluntários em funções estruturais revela um desvio da política de direitos para uma lógica de favor, contrariando:
- A LOAS, que prevê equipe contratada como parte essencial dos serviços continuados;
- A Lei do Voluntariado (Lei 9.608/1998), que define o voluntariado como eventual, sem vínculo e sem substituição de profissionais;
- As Orientações Técnicas nacionais, que reforçam: atividade finalística exige equipe de referência contratada.
Além disso, a portaria permite que entidades religiosas tenham controle sobre voluntários, o que ameaça a laicidade do atendimento e abre espaço para práticas de proselitismo. O risco à confidencialidade e à integridade dos serviços é real — especialmente quando se trata de crianças e adolescentes acolhidos.

Portaria 46/2010 e a fragmentação da rede pública
Por outro lado, o problema não começa na Portaria 105/2025. A Portaria 46/2010 já havia contribuído para o enfraquecimento da rede estatal socioassistencial, ao consolidar um modelo baseado em conveniamentos com OSCs e fragmentação das equipes de referência. Assim, afastou os CREAS de sua função central e os transformou em meros gestores de parcerias, com menos presença nos territórios e menos capacidade de garantir direitos.
Propostas legislativas e urgências administrativas
Diante disso, algumas medidas precisam ser tomadas com urgência:
- Sustar a Portaria 105/2025 por vício material e incompatibilidade com o SUAS;
- Revisar a Portaria 46/2010, recompondo o papel técnico e o vínculo do NPJ com os CREAS;
- Garantir que nenhum voluntário atue em atividades finalísticas nos SAICAs, como prevê a legislação nacional;
- Impedir qualquer forma de proselitismo religioso, violação de sigilo e exposição de dados sensíveis;
- Recompor o financiamento da rede, atualizar os parâmetros de custeio e publicar cronograma de concursos;
- Retomar a função dos CREAS como referência territorial e apoio matricial intersetorial;
- Exigir transparência total da SMADS, com publicação de todos os acordos, listas de voluntários, rotinas e cargas horárias das equipes;
- Convocar a Secretária da SMADS para audiência pública, além de acionar o COMAS, o MP e o TCM para avaliar riscos e impactos.
Defesa do SUAS é defesa da vida
O Sistema Único de Assistência Social foi construído para garantir proteção social com planejamento, equipe, financiamento e respeito aos direitos humanos. Entretanto, a Portaria 105/2025, ao flexibilizar princípios centrais, coloca em risco a continuidade, a qualidade e a legalidade dos serviços prestados à população mais vulnerável.
Portanto, para avançar, é preciso firmeza: a assistência social não pode retroceder à lógica da caridade. Ela precisa ser tratada com a seriedade que a Constituição exige.